segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Uma pequena investigação botânica

 


Foto: Tina Arce

Quando eu ainda era uma menininha, do alto da sabedoria dos meus onze anos de idade, escrevi meu primeiro livro. O título era Uma Árvore chamada Aninha. Basicamente, era a história da semente de uma árvore que brotou em um planeta onde não havia árvores e a surpresa das crianças com a aparição daquela coisa que ninguém sabia o que era. Bom, o fato é que o livro foi um sucesso de público - leia como público o meu irmão mais velho, que foi o único a quem tive a coragem de mostrar meu best seller. Meu irmão, maravilhoso, sempre me incentivou. Mas foi um fracasso de crítica, porque ele mostrou a um amigo, crítico literário, que de início já não gostou do título. Achava que deveria mudar para Uma Árvore chamada Esperança – Epa, peraí! Esperança pra mim era o nome daquele inseto que eu confundia com louva-Deus...Deus me livre...hahaha. Resultado, foi o meu primeiro livro não publicado, seguido de diversos outros que vieram a seguir; também não publicados, para seguir uma linha de conduta...rs.

Por que lembrei disso? Quase sempre faço o mesmo trajeto nas minhas caminhadas. De repente, percebi umas pequenas árvores que nunca tinha reparado que estavam lá. Fiquei curiosa. Elas tinham uns troncos bem fininhos com umas folhas bem grandes. Tirei uma foto e acionei um exército de pessoas entendidas nesses assuntos arbóreos. Nada. Ninguém sabia. Eram muitas as suspeitas. Seria um ipê-roxo? Nem a mais bambambam no assunto conhecia a planta.

A tal planta tentou ser misteriosa em vão, porque minha irmã, Tina, é uma ciclista observadora de paisagens que percorre toda a parte norte da cidade. Fazendo seu passeio por um parque ela reconheceu a tal árvore, que tinha uma placa de identificação: Sterculia Striata (cujo nome popular é Chichá do cerrado). Nada como uma irmã ciclista e investigadora botânica.

O fato é que passando por elas hoje, me lembrei do livrinho que escrevi. Me lembrei também da criança que eu era e que se perdeu um pouco no decorrer da vida. Retomei, por uns instantes, a minha capacidade de maravilhar-me com as árvores e comecei a olhar uma a uma. Suas folhas, suas flores. As nativas do cerrado, tão lindas, com seus troncos retorcidos.

Não olharei mais para uma Chichá da mesma maneira. Para mim ela agora será uma Aninha. E o crítico estava certo; uma árvore é, sim, uma esperança.

 

Anita Safer

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O céu da minha infância

Foto: Tina Arce

Estava no ônibus interestadual. Pela janela via o céu e suas nuvens branquinhas de algodão doce. Minha mente viajou para o passado.

Me vi deitada na grama da minha infância olhando pro céu. Horas eram usadas nesse exercício. As nuvens passavam vagarosas, fazendo e desfazendo formas. Um bicho aqui, um objeto ali. Jesus acenando.  Meu Deus, Jesus está desmanchandoooo! Às vezes ficava sozinha; em outras algum coleguinha também participava do doce delírio e tentávamos compartilhar impressões. Nem sempre conseguíamos ver a forma que o outro via, mas era uma festa quando isso acontecia.

Eu acreditava que o céu e as nuvens estavam ali pra me servir. E quando era a noite, achava que o som que os grilos emitiam era o som das estrelas. E elas brilhavam pra quem? Pra mim, é claro. Eu era o centro do Universo, pelo menos do meu Universo...rs.

Lembro da minha decepção quando o céu resolveu desaguar e transformar em lama meu caminho em direção à igreja. Como ele pôde ser tão insensível? Era o dia da minha primeira comunhão. Eu estava muito compenetrada com aquele acontecimento. Desejava ser uma freira, quiçá, uma santa. Os respingos de lama sujariam meu longo vestido branco e meu sapato branco novinho. Era um sapato envernizado. Que desaforo! Mas não foi um respingo de lama que destruiu meu sonho de santidade. Um primeiro beijo  jogou por terra minha suposta vocação.

É bom relembrar esses momentos. Faz minha criança interior sorrir. Hoje olho a imensidão do céu e ele sorri de mim. Porque ele sabe que eu irei embora em algum momento e ele irá continuar. Ontem eu olhava de baixo para ele lá em cima. Hoje ele olha lá de cima para mim. Mas no futuro, eu já tendo virado pó, quem sabe minhas partículas subam em direção à imensidão e eu me junte ao céu? Seremos um só, passeando pelas galáxias, vendo das alturas as pessoas lá embaixo olhando para nós, achando que estamos bem acima e distantes. Essa distância é uma ilusão. Carl Sagan já dizia que somos feitos da poeira das estrelas. Logo, eu e você não somos o centro do Universo, mas fazemos parte dele. 



Anita Safer.

domingo, 23 de julho de 2023

A sinfonia do... então, tchau!

Foto: Morgana Guimarães

Fui assistir  uma apresentação de uma orquestra de câmara um dia desses. Aqui em Brasília a orquestra sinfônica do Teatro Nacional tem promovido esses eventos. O que é quase maravilhoso. Digo "quase" porque as apresentações da orquestra do Teatro Nacional NÃO acontecem no Teatro Nacional. Aquele teatro lindo - em forma de pirâmide cheia de quadradinhos, uma lindeza arquitetônica e cartão postal da capital federal - está fechado desde 2014. Lá assistia  peças e apresentações memoráveis. Como a vez em que minha irmã fez uma chapinha pra assistir uma peça onde atuaria Thiago Lacerda. Vai que ele olharia pra ela. Quem sabe? Final da peça veio o comentário: "Ele não me viu, mas quando ele gritou CALÍGULAAAA... meus cabelos trabalhados na chapinha balançaram ao vento..."kkk. Vou voltar agora à orquestra de câmara (desculpem a divagação, sou mestra nesta arte). Uma das peças apresentadas foi o final da Sinfonia n° 45, de Haydn, conhecida como Sinfonia do Adeus. Eu nunca tinha assistido, então foi um susto quando os músicos, durante a apresentação, foram saindo aos poucos do palco. Saía um, saía outro, às vezes dois ao mesmo tempo. E eu pensando, gente, o que está acontecendo? Será que comeram alguma coisa estragada? Só ficaram dois no palco. Aí minha filha, que é muito sabida, disse: Saquei, é a sinfonia do adeus. Eles estão dando um "então, tchau" e indo embora. Nossa, achei genial. No folheto da apresentação tava lá, explicando tudinho. Eu sempre tenho preguiça de ler antes. A sinfonia foi escrita por Haydn baseada numa história real. Ele tinha um príncipe como patrono, que fazia umas estadias danadas de demoradas no verão em um palácio remoto, lá na Hungria. Os músicos, coitados, tinham que ficar lá, apresentando, longe de suas famílias. Aí ele bolou essa sinfonia, onde os músicos iam saindo à francesa. Foi um jeito esperto de mostrar pro príncipe que aquele programa tava demorado demais. E o príncipe sacou a mensagem. Que menino esperto, esse Haydn. Aí fiquei pensando. Quantas vezes na vida a gente dá uma de Haydn e vai saindo de fininho de alguma situação que tá meio chata. Às vezes é a melhor maneira de sair, sem estardalhaço, sem estragar uma relação que nos é cara, mas que não tá muito legal naquele momento. E isso vale nas diversas áreas do relacionamento. Mas pensei também em como a arte encontra maneiras de protestar e se posicionar no decorrer da história. Às vezes protestos em forma de gestos, de músicas, de poesias ou qualquer outra forma de manifestação artística. Por essas e outras amo a arte, ela nos transporta, nos instiga, nos inspira. Sem ela o mundo seria um lugar muito mais árido para se viver. Agora, vou saíndo de fininho, antes que vocês me mandem para um palácio qualquer nos confins da Hungria... Então, tchau!

Anita Safer

terça-feira, 16 de maio de 2023

Uma herança e uma bênção

Foto: Liana Rocha 



Não sei quanto a vocês, mas, quando olho para um objeto antigo, minha alma viaja. Minha mente começa a imaginar em que momentos da vida de alguém ele esteve presente. Foi fonte de alegria? Quantas mãos o utilizaram? Como ele resistiu ao tempo e chegou até aqui? 
Uma máquina de costura bem antiga estava entre os itens que minha amiga Sílvia estava doando. Ela fez um encontro de desapego com algumas amigas - eu, inclusive - pois queria que a gente visse se queríamos alguma coisa. Uma amiga nossa, inicialmente, ficaria com a máquina, mas sentiu que não a usaria por falta de tempo e não queria prejudicar o fluxo da história de vida daquela máquina, que era cheia de encanto. Em frente àquela máquina de costura, a mãe de Sílvia sentava-se, às vezes, dia e noite. Ela mirava uma lanterna para iluminá-la quando a luz do dia ia embora. 
Os carretéis de linha bailavam, a agulha subia e descia, pespontava, ziguezagueava, dava forma a tecidos, que, magicamente, transformavam-se em lindas peças. Lindo também devia ser o brilho nos olhos da Sílvia menina que, de tanto observar, foi aprendendo aquele ofício e se tornou a herdeira daquele tesouro. Agora era o tempo de passar adiante aquela máquina. Não havia uma herdeira natural. Não haviam olhos brilhantes costurando sonhos e ideias ao ouvir o som do motor, a cada pedalada. Sílvia conversou em pensamento com sua mãe, que já está em outro plano, e pediu que ela escolhesse quem seria a pessoa que herdaria a máquina. Eu acredito nessa energia boa que o pensamento promove, unindo existências. É como se um roteiro, cheio de magia, fosse sendo escrito. E assim a mágica se fez. Comentando com minha nora Liana sobre a máquina, os olhos dela brilharam, talvez como os olhos da pequena Sílvia brilharam um dia. As duas têm a mesma raiz; foram criadas ao som de uma máquina de costura e ao som do samba. Interesses trazidos pela ancestralidade unem, no curso das vidas, pessoas afins. Agora Liana está feliz e cheia de planos. Sílvia também está feliz, por sentir que sua escolha foi abençoada. Como a vida é poesia quando vivida com a alma e com o coração!

Anita Safer