domingo, 30 de agosto de 2020

Mexericando

 

Foto de Liana Rocha (com Isabela)

Tem coisas que são chatas de fazer na vida, mas são necessárias. Uma delas é fazer exames. E lá fui eu fazer uma endoscopia um dia. Você já fez? Também ficou resistindo quando o anestesista diz... Conte até 10? Eu reluto, pareço criança. Não vou dormir, não vou dormi... não vou dorm... não vou d... Absurdo, ele sempre vence. 

Mas o mais bizarro ainda está por vir. Quando retornei da sedação estava em casa. Estatalada no sofá. Meus filhos às gargalhadas. É muita vulnerabilidade pra uma pessoa só. Eu nem costumo beber pra não sair de mim, se é que é possível a gente sair da gente...rs. Ou será que quando a gente bebe ou está sob efeito de alguma sedação, aí sim, a gente sai de si? Aquela pessoinha nossa que está escondida lá nos confins da alma? Aquela criatura bizarra que faz coisas sem pé nem cabeça sou eu? Ou  sou essa criatura aqui que escreve coisas sem sentido? Eis o que não sei.

Veio então o relato. Meu filho Bruno, que me acompanhou ao exame, disse que quando saímos da clínica - eu meio grogue - pedi que ele comprasse umas mexericas de um vendedor na rua. Ele achou que tava tudo certo, não suspeitava, então, das minhas faculdades mentais. Chegando ao estacionamento,  disse que eu pedi a ele que desse umas mexericas para o guardador de carros e perguntei: Ele ficou feliz? Creio que meu filho ficou meio confuso neste momento, se me levaria pra casa ou se me levaria pra uma clínica psiquiátrica. Mas as pessoas são estranhas, às vezes, e na minha família somos... quase sempre. Embaixo do prédio, diz ele, repeti o ato. Mexericas para o porteiro, seguidas da frase "ele ficou feliz?"... Moça da limpeza com os braços cheios de mexerica ouvindo confusa a pergunta "ela ficou feliz?". Diz ele que foi entre mexericas e votos de felicidade que chegamos em casa e eu desmontei no sofá.

Depois de ficar um pouco indignada com o relato e gargalhadas, fiquei a pensar. Por que, na minha inconsciência, me tornei uma mexeriqueira? kkkk...

A origem da palavra mexericar vem de denunciar, já que a fruta, mexerica, tem um cheiro forte e denuncia quem se delicia com ela. Acho que minha inconsciência mexeriqueira queria denunciar que todas as pessoas deveriam buscar ser felizes. Que essa felicidade saísse pelos poros, que seu aroma ocupasse as ruas, os prédios, a cidade, o mundo... 

Mexeriqueiros do planeta... Isso está cheirando bem... 


Anita Safer

Estantes, ipês e outros pensamentos

 

Foto: Tina Arce

Hoje acordei muito cedo e olhei pela janela. Sempre faço isso quando acordo. É um dos movimentos que me permito fazer nesses tempos de pandemia. Olhando pela janela pensei: "Nossa, o dia hoje tá parecendo uma estante...". Me diverti com a ideia. Devíamos dar nomes aos dias. Talvez letras de música... hoje o dia tá tão "o sol há de brilhar mais uma vez..." - ou nome de alguém, tipo um crush... o dia hoje tá tão fulano de tal, uma corralinda. Acho que essa ideia da estante veio por algumas razões. Uma delas vem das lives e entrevistas da atualidade. Sempre a pessoa está na frente de uma estante e a gente fica na maior curiosidade tentando descobrir os livros que a pessoa tem. Às vezes nem dá pra prestar atenção direito ao que a pessoa tá falando. A conclusão que chego é que vou ter que evitar fazer lives e dar entrevistas, por enquanto, porque não tenho uma estante... hahaha. 

Voltando ao dia, com cara de estante, respirei o ar da manhã e dei de cara com O Ipê Floresce Em Agosto,livro de Lucilia Junqueira de Almeida Prado. Um lindo e amarelo ipê. Diversos deles estão espalhados pela cidade e também nas redes sociais. Eles amam a seca e sorriem. Depois eles  esparramam-se pelos gramados e outros aparecem deslumbrantes - rindo e bordando o chão com suas cores. Me faz pensar nesse momento triste, seco e cheio de restrições e dor que passamos. Se é da natureza florir, contrariando as agruras do tempo, seria da nossa natureza florir um pouco que seja para dar um respiro neste tempo de espera e incertezas? Creio que sim.  #somostodosipês,

Na estante da minha janela também não faltam os pássaros. Não os de Hitchcock, graças ao bom Deus...rs. Mas pássaros diversos que cantam, voam e... seguem sendo pássaros. Eles remetem ao livro de Érico Veríssimo - Olhai Os Lírios Do Campo. Não há lírios em frente à minha janela, infelizmente. Mas os pássaros estão lá e me lembram a parábola do Sermão da Montanha, em que os pássaros estão presentes confiando que estão protegidos e não precisam se preocupar com nada, porque tudo está nas mãos de Deus. No livro de Érico Veríssimo, Olívia tenta convencer Eugênio que ele deve deixar de ser tão ambicioso e prestar atenção às coisas simples da vida, como observar os lírios do campo. Olívia, não tenho lírios, mas tenho pássaros, serve? Sim, serve. Eu pergunto, eu respondo. Afinal, estou só comigo mesma diante desta janela/estante; falando sozinha, nem sequer tenho botões na roupa para falar com eles. 

Na estante imaginária também constam outros livros: Vidas Secas, A Revolução dos Bichos (dedicado ao cachorro interativo do andar de cima)... 

Quero que tudo passe e a gente volte a transitar sem medo pelas ruas, criando novos temas pro livro de nossas vidas. Com todo respeito e admiração por Gabriel Garcia Márquez, não quero viver Cem Anos de Solidão.


Anita Safer