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Foto: Arquivo pessoal de Márcia Alves |
Existem histórias, ou "causos", que me encantam. É muito bom ouvir. A minha família é recheada deles. Mas resolvi contar um que me divertiu bastante e trouxe um certo ensinamento. Minha amiga Márcia - estou sempre falando dela, mas é porque andamos muito juntas, eu, ela e Sílvia. Nos auto denominamos As Bunitas...rs - me contou este causo de seu avô. Resolvi publicar essa história, que escrevemos juntas, Márcia e eu. Vô Biló é avô de Márcia por parte de pai. Pra começar ele se chamava Severino. Havia quem jurasse que ele fosse japonês. Até mesmo seus familiares suspeitavam disso. Mas, que nada. Filho de índio com português deu nisso. Um legítimo Paraíba-Nipônico...haha. Na Paraíba todo Severino é Bill, mas este Severino tinha um diferencial... Era um paraibano da gota serena. Dizem que ele era muito curioso e esperto e ao escutar muitas vezes a expressão "Bill ó", acabaram por aglutinar seu nome e surgiu o "Biló". Pronto. Já estava mostrando que chegou chegando. Seu Biló sonhava em entrar pro serviço no quartel, mas não sabia como. Então descobriu que em uma cidade próxima estavam recrutando sujeitos para fazer parte do quartel local no serviço de construção, para ajudantes de pedreiro. Lá foi Biló, ele e seus sonhos. Sorriso no rosto, trilha sonora no coração. Dessa trilha sonora falarei logo, logo. Chegando lá foi para a revista no quartel. "Só vai ficá quem soubé erguê muro, soubé fazê fundação, soubé alinhá ladrilho e empareilhá bem certinho os tijôlus. Quem aqui já trabalhô como ajudante de pedrêru?" Perguntou o oficial. Foi aí que seu Biló, na época o jovem e magrelinho Severino, levantou a palma da mão e disse bem alto: "Eu. Eu sou bom nisso! Ergo muros como niguém! Sou bom mesmo! Ninguém é melhor ajudante de pedreiro do que eu!" Pronto. Biló entrou no quartel. Logo mais, no alojamento, ainda segurando a farda nas mãos e indo ver em qual cama iria se deitar logo mais, deu de cara com um outro moço que acabara de conseguir se alistar; querendo fazer amizade (e também se safar da mentira que acabara de pregar), jogou esta: "Ei, cabra, tu me ensina a fazer esse trabalho de ajudante de pedreiro? Porque eu nunca nem peguei num tijolo na vida!" E ao olhar pra cara do "peste" escutou esta frase: "Valha-me Deus! Era eu que ia te pedir isso". O fato é que nenhum dos dois sabia nadica de nada do serviço. Mas fizeram o tal do muro e ficou uma belezura. Tá de pé até hoje. Foi construído na base da camaradagem e camaradagem é que dá sustentação a muitas coisas, inclusive a um bom muro. Esta história, porém, não foi a que mais me fez ficar fã de Vô Biló. Ela só serve de pano de fundo pra que eu fosse formando a ideia do homem que ele era. Vô Biló tinha um talento. Era músico, o danadinho. Ele tocava corneta no quartel e pistão na banda da polícia. Vida de músico nunca foi fácil. Mas, pra quem sabe bem viver, as coisas acabam acontecendo, de um jeito ou de outro. Não podia ter festejo, serenata, show, procissão, quermesse e lá estava Vô Biló. Todo mundo admirava e respeitava seu talento. Sempre o chamavam pra tocar em todos os lugares; e ele sempre ia porque de vintém em vintém a gente chega lá. Houve um baile de carnaval em que os músicos estavam muito cansados e queriam mesmo era ir pra suas casas. O contratante do baile disse aos músicos que tinham que tocar mais duas horas. Foi aí que Seu Biló disse aos outros "cabras": "Pois agora até o povo vai cansar, vamos tocar Andaluzia". E foi Andaluzia em samba, em xote, em marchinha de carnaval, em frevo. E haja Andaluzia... E não é que o povo gostou? Isso era nos anos 30 e quem passa lá pela cidade? Lampião. Isso mesmo, o cabra da peste. Ele era durão, como todos sabem. Mas gostava de uma boa música. Quem não? Pois assuntou sobre os talentos musicais da cidade e quem era o cara da vez? Isso mesmo, você já sabe. Vô Biló então foi tocar pro Rei do Cangaço. Caprichou no repertório e tome Andaluzia de tudo o que é jeito. Lampião era um homem vivido. Precisava ser muito esperto e ligado pra tocar todo aquele terror que ele tocava. "Peraí, peraí... Tem uma coisa errada nessa tocação. É impressão minha ou o sinhô tá tocando a mesma música a festa toda?". Vô Biló não se intimidou e confirmou. Afinal, ele não tinha motivo de se envergonhar. Tudo bem que só tocasse a mesma música. Mas fazia isso com maestria. Lampião olhou com cara feroz, mas disse docemente "Gostei do cabra, o cabra é valente! Toque mais um bocadinho que eu tô gostando de ouvir". E tome Andaluzia. Como não apaixonar por uma figura dessa? Eu apaixonei. Achei essa história cheia de sabedoria. É possível ser extremamente feliz e produtivo com o que se tem. O pouco pode se tornar muito se você usa o que tem com sabedoria. Valorizar quem você é, ter orgulho de seus dons. Compartilhar o dom que tem pra ser feliz e fazer os outros felizes. Grande beijo, vô Biló. Toque Andaluzia por todo o céu, onde faz morada. Agora fico me perguntando se Newton Mendonça não teve um momento mediúnico quando compôs (com Tom Jobim) o Samba de uma nota só. Isso tem o dedo de Seu Biló... Ah, tem...
Anita Safer e Márcia Alves